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A Libertadores de 1981:

 



* Por Mauricio Neves

A história costuma se referir ao período compreendido entre os anos de 1978 a 1983 como a Era de Ouro do Flamengo, delimitada, de um lado, pelo gol de Rondinelli contra o Vasco, e de outro, pela saída de Zico para a Itália. De fato, o time da Gávea empilhou taças conquistando quatro campeonatos estaduais, três brasileiros, a Libertadores e o Mundial, além de vários turnos do estadual – incluindo-se aí um pentacampeonato da Taça Guanabara – e torneios na Europa. Uma Era de Ouro, sem dúvida, mas que chegou a ser questionada justamente antes da arrancada para as duas maiores conquistas.

Ao ser eliminado do campeonato brasileiro de 1981, no dia 19 de abril, o Flamengo se viu às portas de uma crise com muitos personagens. Na verdade, cinco meses antes da derrota para o Botafogo nas quartas-de-final da Taça de Ouro, o time havia perdido a chance de disputar o tetracampeonato estadual ao ser derrotado pelo Serrano, de Petrópolis, com um gol que tornou o seu autor, o desconhecido Anapolina, uma celebridade instantânea. O revés no acanhado Estádio Atilio Maroti foi tratada como uma fatalidade, mas a eliminação diante do Botafogo expôs as chagas flamengas – existentes e inexistentes – em praça pública.

A edição de número 571 da Revista Placar, de 24 de abril de 1981, trouxe em sua página 12 uma matéria revelando a crise rubro-negra sob uma manchete em letras garrafais: CAIU UM IMPÉRIO. O texto assinado pelo jornalista Marcelo Rezende era taxativo: Todo grande time vive seu ciclo de glórias – e o do Flamengo sofreu uma brusca interrupção com a derrota de 3 a 1 para o Botafogo. Embora um dia isso tivesse que acontecer, ninguém imaginava que as conseqüências acabassem sendo tão dramáticas.

As citações usadas na reportagem refletem o ambiente do clube. Disse Júnior: - É o fim de tudo. Pensei que esse dia nunca fosse chegar. Perdemos o bi de maneira desastrosa. Já Tita, que vinha de uma campanha para vestir a camisa 10, acusava a imprensa: - A culpa é dos jornais, que vivem inventando crise no Flamengo. E sobre Tita, lá estava o sentimento de um torcedor anônimo, dizendo querer queimar vivo o jogador: - Como a polícia não deixa, queimo tua camisa! Para fechar o texto, Marcelo Rezende fitava o futuro incerto escorado nas ruínas rubro-negras: Resta ao Flamengo o desafio de reerguer o seu império desmoronado.

O técnico Dino Sani, contestado por deslocar Adílio para a ponta esquerda, teve seus planos esmiuçados pelo repórter Hideki Takizawa na edição seguinte da revista Placar, divididos em 6 tópicos: Devolver a titularidade a Rondinelli e vender Luís Pereira, contratado a peso de ouro; efetivar Mozer como quarto-zagueiro e barrar Marinho; dar a camisa 8 a Andrade e vender Adílio; comprar um ponta; acertar a renovação de Zico e vender Tita, que estava em descrédito com a torcida e, finalmente, restabelecer a paz entre Nunes e o resto do elenco.

O distanciamento histórico permite um diagnóstico mais preciso, até mesmo porque baseado nas soluções que foram encontradas – e a maior parte delas, as de campo e comando, estava ali mesmo, na Praça Nossa Senhora Auxiliadora, sem número, Rio de Janeiro. Dois problemas: Primeiro, o Flamengo pagava pelo cansaço de Júnior, Tita e Zico, divididos com a seleção brasileira em plena maratona das eliminatórias. Segundo, nem Dino Sani e nem o seu antecessor, o grande Modesto Bria, haviam conseguido substituir Cláudio Coutinho à altura. A primeira solução foi de calendário: a seleção brasileira se reuniu apenas uma vez por mês no segundo semestre, para amistosos. A segunda foi caseira: o melhor treinador para aquele grupo estava por perto, às voltas com as contusões que encerrariam prematuramente a sua carreira de meio-campista.

Aos 32 anos de idade, em meio ao turbilhão em que se encontrava a Gávea, Paulo César Carpegiani se tornou auxiliar técnico de Dino Sani. Mas a sua influência junto aos jogadores e o evidente poder de decisão renderam-lhe o apelido de “Golbery do Futebol”, alusão ao ministro-chefe do Gabinete Civil do então presidente do país, João Batista Figueiredo. Assim, na metade de junho, Carpegiani estava ao lado de Dino quando o Flamengo deu mostras de que estava recuperado do baque na Taça de Ouro, ao vencer o Torneio de Nápoles marcando dez gols em dois jogos, jogando com dois pontas abertos, Chiquinho e Baroninho.

A quatro dias da estréia na Taça Libertadores, a derrota por 2x1 para o Fluminense pela Taça Guanabara acendeu a luz de alerta. Embora tenha sido o primeiro resultado negativo no campeonato estadual, o tema no vestiário após o jogo era o pouco comando de Dino Sani como treinador e, na mesma toada, a falta que fazia a liderança de Carpegiani dentro das quatro linhas.

O Mineirão recebeu mais de sessenta mil pessoas na noite de sexta-feira, 3 de julho de 1981. Atlético Mineiro e Flamengo ainda tinham abertas as feridas da épica decisão do campeonato brasileiro do ano anterior. Para aumentar o drama, os dois treinadores – Pepe, no Galo, e o rubro-negro Dino Sani – estavam na corda bamba. Uma estréia com os nervos à flor da pele.

Os dois times tiveram chances de abrir o placar, mas o time da casa saiu na frente aos 28 minutos. Éder acertou uma bomba no ângulo esquerdo de Cantarele em uma cobrança de falta e incendiou o Mineirão. O Flamengo quase empatou em uma jogada individual de Vitor, que formava o meio de campo rubro-negro ao lado de Andrade e Zico. Nunes também esteve perto de marcar, em uma meia-bicicleta, mas o primeiro tempo acabou mesmo com a vantagem mineira.

Aos 18 do segundo tempo, em outra cobrança de falta, Éder abriu 2x0 – desta feita, em falha de Cantarele. A vantagem de dois gols não se consolidou. Ainda com o Mineirão em chamas, aos 20 minutos Zico enfiou uma bola para Nunes entre dois beques, e à saída de João Leite o centroavante rubro-negro tocou de leve, no canto direito, fazendo o primeiro gol do Flamengo na história da Taça Libertadores da América. Tita quase empatou o jogo em uma cabeçada que por pouco não encobriu João Leite, mas o feito caberia mesmo ao zagueiro Marinho, um dos mais contestados após a derrota para o Botafogo em abril. A 5 minutos do fim, Baroninho bateu um escanteio da ponta direita. A bola subiu e passou por toda a defesa, indo ao encontro de Marinho no bico esquerdo da pequena área. A cabeçada saiu alta, encobriu o goleiro atleticano e morreu no ângulo contrário, silenciando o Mineirão. Enquanto Dino Sani ganhava uma sobrevida, do outro lado o técnico Pepe era demitido pela diretoria atleticana.

No outro jogo do grupo, o clássico paraguaio entre Cerro Porteño e Olimpia, empate em 0x0. Antes da segunda rodada da Libertadores, o Flamengo conquistou antecipadamente o tetracampeonato da Taça Guanabara, festa que se prolongou com os 5x2 impostos ao Cerro Porteño no Maracanã, no dia 14 de julho. Dois gols de Zico – um deles em magnífica cobrança de falta, deixando o goleiro Fernández estático – abriram a porteira pela qual passaram também dois gols de Nunes e um de Baroninho, este também de falta. A goleada isolou o Flamengo na ponta da tabela, após o empate sem gols entre Olimpia e Atlético Mineiro, em Assunção.

Menos devido aos resultados e mais pelo rendimento do time, a diretoria rubro-negra promoveu a já esperada troca no comando técnico na véspera da partida contra o Olimpia, no Maracanã. Paulo César Carpegiani assumiu o posto na quinta-feira, dia 23 de julho, e no dia seguinte já assinaria a súmula como treinador do Flamengo. O programa Globo Esporte, da TV Globo, exibido no início da tarde de sexta-feira, confirmou a notícia e trouxe a primeira declaração de Carpegiani como técnico em rede nacional: - Eu acredito que não há dificuldade nenhuma, muito pelo contrário. Sempre adorei essa responsabilidade, e agora mais do que nunca estou pronto e apto para encarar esse problema com tranqüilidade.

O Flamengo precisava da vitória, eis que o Atlético havia vencido o Cerro Porteño três dias antes, no Paraguai, com um gol salvador de Éder no final do jogo. Adílio abriu o placar aos 22 minutos, pegando o rebote de uma falta cobrada por Baroninho, mas o goleiro Almeyda impediu que os atacantes rubro-negros transformassem a superioridade demonstrada no primeiro tempo em gols. O panorama mudou no segundo tempo, o Olimpia dominou o meio de campo e empatou com o lateral Solalinde. Os quase quarenta mil torcedores que foram ao Maracanã empurraram o time até o fim, mas o jogo acabou mesmo empatado.

Como os times brasileiros eram os favoritos do grupo, com uma única vaga em disputa, perder ponto em casa para os times paraguaios era um grande prejuízo. O Atlético também sofreu contra o Olimpia, dia 28 de julho, no Mineirão, vencendo por um minguado 1x0 e amargando a expulsão de Éder no último minuto. Desfalcado, três dias depois por muito pouco o time mineiro não perdeu para o Cerro em Belo Horizonte. Vaguinho marcou aos 43 do segundo tempo o último gol do empate em 2x2, deixando os times brasileiros empatados na classificação.

Flamengo e Atlético Mineiro voltaram a se enfrentar no dia 9 de agosto, diante de mais de 60 mil pessoas no Maracanã. Os jogadores rubro-negros celebraram um pacto por Carpegiani, prometendo a classificação na chave, e o time encurralou o adversário no primeiro tempo. Rondinelli quase marcou de cabeça, após um cruzamento de Júnior. Depois foi a vez de Nunes, que dominou no peito um passe de Zico e chutou rente ao ângulo direito. Logo em seguida, João Leite fez uma grande defesa em cobrança de falta de Júnior. Apesar do domínio, nada de gols até o intervalo, e o castigo veio aos 17 do segundo tempo: Palhinha fintou Rondinelli, driblou Raul e tocou para o gol vazio.

Uma vitória do Atlético deixaria a vaga muito perto dos mineiros, pois o Flamengo precisaria vencer seus dois jogos no Paraguai para forçar uma partida desempate. Empurrado pela torcida e pela necessidade, o Mais Querido foi em busca da virada. Aos 22 minutos, Raul saiu jogando com Júnior pelo lado esquerdo. Júnior avançou até a intermediária e esticou para Zico na ponta esquerda. O camisa 10 da Gávea foi encurralado pelo beque Heleno, mas aplicou-lhe um drible espetacular e cruzou para o meio da área. João Leite tentou interceptar, mas soltou a bola nos pés de Nunes, que não perdoou. Dois minutos mais tarde, para delírio do Maracanã, Tita roubou uma bola de Heleno e chutou de pé esquerdo, por baixo, indefensável, no canto direito de João Leite.

O Flamengo continuou atirado ao ataque, e quase matou o jogo em uma arrancada de Nunes pela direita. Mas aos 34, depois de uma tabela entre Cerezo e Palhinha, Reinaldo saiu na cara de Raul e empatou o jogo. Mais tarde, em entrevista ao radialista Kleber Leite, da Rádio Globo, Carpegiani lamentou que o time tivesse continuado a atacar incessantemente após virar a partida, mas disse ter fé em duas vitórias no Paraguai.

No dia 11 de agosto, no Defensores del Chaco, o Flamengo goleou o Cerro Porteño por 4x2, três de Zico e um de Baroninho. O terceiro gol rubro-negro, um sem-pulo fantástico de Zico, ecoou de norte a sul do Brasil com a narração épica de Jorge Cury pela Rádio Globo: - Baroni entregou a Tita, Tita recebe, prepara agora, executa o corte, bateu a Ribas, levanta à boca da meta, emenda Zico é gol com aço, é golaçooooo! Batido o Cerro, bastava uma vitória simples contra o Olimpia para avançar à fase semifinal da Libertadores. Uma vitória paraguaia classificaria ao Atlético, e um empate levaria os dois brasileiros para um jogo extra.

O Olimpia já estava eliminado, mas havia um clima de decisão. No mesmo vôo que levou o Flamengo ao Paraguai, estavam dois dirigentes do Atlético, abraçados a bolsas de couro. Eles não confirmaram, mas também não negaram que estavam levando dólares para premiar qualquer um dos times paraguaios que arrancasse ao menos um ponto do Flamengo. E pelo que se viu do Olimpia, naquele dia 14 de agosto, os paraguaios de fato jogaram com uma motivação pouco comum para um time eliminado.

O Flamengo teve uma chance logo no primeiro minuto. Zico entrou na área pela esquerda e rolou a bola em busca de Nunes, mas a zaga bloqueou. Aos 4, de novo Zico, em arrancada pelo meio que resultou em um chute que quase acertou o ângulo direito de Almeyda. Três minutos depois, Nunes cruzou da ponta esquerda e achou Zico na meia-lua, que dominou como um pivô e rolou para Leandro, na meia direita. O chute rasteiro do lateral saiu a um palmo do poste direito, com Almeyda vencido no lance. O Olimpia só ameaçou aos 11 minutos, em dois lances consecutivos, defendidos por Raul.

O Flamengo ainda teve uma oportunidade aos 33 em um chute longo de Vitor, defendido por Almeyda, mas a facilidade dos minutos iniciais desapareceu. As oportunidades de gol, fartas no primeiro tempo, se tornaram escassas na etapa final. Ainda assim, a torcida rubro-negra chegou a sentir o gosto da vitória aos 42 minutos. Tita fez uma jogada individual pela meia esquerda e chutou com efeito, no canto esquerdo. Almeyda espalmou e a bola ficou quicando na pequena área, ao lado do poste esquerdo, com o gol vazio. Chiquinho chegou absoluto no lance, mas ao invés de marcar o gol da vitória tentou servir a Nunes, só que tocou forte demais e a bola atravessou toda a pequena área.  O Olimpia comemorou o 0x0 como se fosse um campeonato, e aos rubro-negros restava aguardar o jogo de desempate com o Atlético.

O palco escolhido foi o Serra Dourada, em Goiânia, que foi tomado por mais de 70 mil pessoas no dia 21 de agosto. O Flamengo estava melhor no jogo e já havia perdido dois gols, um com Carlos Alberto e outro com Nunes, quando Reinaldo cometeu uma falta violenta após ser driblado por Zico, aos 37 minutos. O centroavante foi expulso por José Roberto Wright e, após sucessivas reclamações dos atleticanos, Palhinha, Éder, Osmar e Chicão também foram expulsos. Este último admitiu, em entrevista ao repórter Raul Quadros, ainda no campo de jogo, que foi expulso porque sugeriu ao árbitro que expulsasse alguém do Flamengo para compensar. Sem o número mínimo de jogadores no Atlético para continuar o jogo, Wright deu a partida por encerrada e o Flamengo foi declarado vencedor. Os mineiros recorreram à confederação sul-americana, mas o resultado foi mantido. Mas no próprio Atlético, a atitude dos jogadores que tumultuaram a partida após a expulsão de Reinaldo foi questionada internamente, o que resultou na dispensa de Palhinha e Chicão, dias depois.

Até começar a fase semifinal da Libertadores, no início de outubro, o Flamengo se dedicou ao campeonato estadual e a um amistoso histórico, no dia 15 de setembro. Marcando a despedida oficial de Paulo César Carpegiani dos gramados, os rubro-negros enfrentaram o Boca Juniors, de Diego Armando Maradona.  Vitória do time de Zico por 2x0, com dois gols do craque maior. Um bom aperitivo para os desafios continentais que se avizinhavam.

O grupo formado por Flamengo, Deportivo Cali e Wilsterman definiria uma finalista da Libertadores. A estréia rubro-negra, em Cali, no dia 2 de outubro, foi uma prova de fogo. Nunes marcou logo aos 10 minutos, de pé esquerdo, mas a correria dos jogadores colombianos não permitiu ao Flamengo impor o seu ritmo cadenciado, e a vantagem só foi mantida até o final graças às grandes defesas de Raul.

A partida mais difícil da fase foi disputada no dia 13 de outubro, a 2.560 metros acima no nível do mar, em Cochabamba. Mais de 35 mil bolivianos gritando em pé, dentre eles o presidente do país, que discursou antes do jogo dizendo que o Wilsterman era a própria Bolívia, transformaram o jogo em uma causa nacional. O clima de euforia no estádio Félix Capriles só diminuiu aos 13 minutos, quando Baroninho desferiu um petardo em uma cobrança de falta e fez o primeiro gol da noite. O Flamengo conseguiu segurar o resultado durante o primeiro tempo, mas aos 8 minutos da etapa final Melgar entrou na área pela direita e chutou rasteiro contra a saída de Raul: 1x1.

O ar começou a faltar para os rubro-negros, e o Wilsterman conseguiu o domínio territorial. Para ganhar fôlego, Carpegiani substituiu Chiquinho por Lico. Naquele momento, o Flamengo começou a ganhar o jogo, e o catarinense a titularidade. Mais do que um ponta, Lico foi um quarto homem de meio de campo que fez o time brasileiro respirar no jogo. De seus pés, aos 19 minutos, saiu a cobrança de escanteio que encontrou Adílio na marca do pênalti. O camisa 8 cabeceou forte, no ângulo esquerdo, e marcou o gol que deixou o Flamengo muito próximo da finalíssima sul-americana.

O Flamengo não teve dificuldades para vencer os dois jogos de volta, aplicando 3x0 no Deportivo Cali e goleando o Wilsterman por 4x1. Na verdade, a vaga na final havia sido assegurada nas duas vitórias fora de casa, e o último desafio na Libertadores seria um violento time de camisas alaranjadas vindo do deserto. O Cobreloa de Mario Soto.

Além das finais da Libertadores, o Flamengo disputava ainda o terceiro turno do campeonato carioca – o Vasco havia vencido o segundo turno.  Assim, a semana do primeiro jogo contra os chilenos foi extenuante: domingo, dia 8 de novembro, clássico contra o Botafogo; terça, Americano de Campos; Cobreloa na sexta e Fla-Flu no domingo. A torcida rubro-negra cogitou pedir licença à Suderj para acampar no Maracanã.

Além de entrar para a história como o Jogo da Vingança, os 6x0 impostos ao Botafogo também tornaram definitivo o desenho tático do melhor time do mundo. Aquela foi a primeira partida de Lico como dono absoluto da camisa 11, o que tornou a goleada um marco tático para o futebol brasileiro: Andrade era o primeiro homem do meio, mas de Adílio em diante ninguém tinha posição fixa, e esse carrossel rubro-negro ainda recebia o apoio constante de Leandro e Júnior. Era impossível parar aquele Flamengo.

Mais meia-dúzia de gols para cima do Americano na terça, e o filme se repetiu no primeiro contra o Cobreloa. Diante de 94 mil rubro-negros, o time chegou a ensaiar outra goleada. Dois gols de Zico, o primeiro em tabela com Adílio e o segundo convertendo pênalti sofrido por Lico, criaram uma vantagem que poderia até ser maior não fosse o goleiro Wirth. Mas no segundo tempo a sequencia de jogos cobrou o seu preço, e o cansaço custou um gol chileno.

Dois dias depois, vitória de 3x1 no Fla-Flu com direito a um golaço do novo titular, Lico. Sem poupar jogadores, o Flamengo havia vencido quatro jogos em uma semana , o que justificaria um período de repouso. Mas na verdade, ninguém queria descansar naquela semana. O Flamengo – seus jogadores e sua torcida – queria mesmo era que chegasse logo o dia 20 de novembro, para o jogo decisivo em Santiago do Chile.

Dizia-se que a Libertadores era uma guerra, e poucos momentos podem comprovar essa teoria tão bem quanto aquela sexta-feira sangrenta, que tingiu de vermelho o gramado do Estádio Nacional de Santiago. Vermelhas também ficaram as camisas brancas de Adílio e Lico, covardemente agredidos por Mario Soto sob o olhar complacente do árbitro Ramón Barreto. O Flamengo resistiu até os 33 minutos do segundo tempo, quando uma cobrança de falta desviu em Leandro e enganou Raul, resultando no único gol da partida. Tudo seria decidido em um joga extra no Uruguai.

Os rubro-negros alimentaram o desejo de revanche durante o fim de semana, e na segunda-feira pisaram o gramado do Estádio Centenário carregando a bandeira uruguaia, Zico e Leandro a frente. Jogariam naquela noite para provar que com as armas do esporte ninguém bateria aquele time. Jogariam para vingar o sangue derramado em Santiago. Jogariam por Lico, que não se recuperou dos ferimentos e fez um único pedido a Adílio: - Dê um drible em Mario Soto por mim.

E como jogou Adílio naquela noite, como se o fizesse por ele, por Lico e pelos milhões de rubro-negros. Aos 17 do primeiro tempo ele recuperou uma bola na área chilena e entregou a Andrade, que achou Zico no meio da área. Zico acertou um voleio no canto direito e abriu caminho para o título. Pouco depois, Alarcon cometeu uma falta violenta em Adílio, como se ainda contasse com a impunidade que reinou em Santiago, mas foi expulso por Roque Cerullo.

O Cobreloa continuou batendo, e em um lance de revide, Andrade também foi expulso. Ainda assim, na bola só dava Flamengo, e aos 30 minutos Adílio escapou livre e tentou um toque para encobrir o goleiro Wirth, que já estava fora da área e impediu o drible com as mãos. Falta na entrada da área. Adivinha quem vai bater, pergunta a música, adivinha quem vai bater com a perfeição costumeira, deixando o goleiro chileno congelado no lance? Zico, rei da Nação Rubro-Negra, botou a sua assinatura inconfundível na sentença que declarava o Flamengo o melhor time da América do Sul.

Ainda houve tempo para o reserva Anselmo entrar no jogo e devolver as agressões a Mario Soto, que havia deixado escoriações em Adílio, Lico, Zico e Tita. Mas o que todos queriam era mesmo começar a festa, que seria curta porque ainda havia um campeonato carioca por conquistar e uma longa viagem para Tóquio na metade de dezembro, e todos mereciam festejar aquela taça conquistada com sangue, suor e talento.

Em sua reportagem publicada na Revista Placar, o mesmo Marcelo Rezende que havia anunciado a queda do império rubro-negro meses antes, afirmava que aquele Flamengo campeão sul-americano seria também campeão mundial. Talvez ele tenha firmado sua convicção no instante em que a delegação rubro-negra desembarcou no galeão no dia 24 de novembro de 1981, e Zico mostrou a Taça Libertadores da América aos milhares de súditos que aguardavam a chegada do Rei e dos demais campeões sul-americanos, e os gritos de campeão se espalharam pelo Rio de Janeiro. Estava provado que o império estava mais forte do que nunca.

Mundial de Clubes

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O Flamengo foi o primeiro clube brasileiro a vencer o Mundial de Clubes no Japão. Acompanhe a história dessa conquista, a mais expressiva da história rubro-negra, na crônica do colaborador Mauricio Neves.

* Por Mauricio Neves.

Domingo, 6 de dezembro de 1981. A noite caía no Maracanã e o time do Flamengo havia acabado de conquistar o campeonato estadual. Ao apito final do árbitro Alvimar Gaspar dos Reis, Jorge Curi ressaltou o tempo de recuperação e passou a palavra para os repórteres Kleber Leite e Loureiro Neto: - Quarenta e nove, quatro minutos, todo mundo flamengando, Kleber e Loureiro? Já dentro do campo de jogo, Kleber Leite responde e passa a palavra a Zico: - Tá flamengando e Zico é campeão...  O camisa 10 da Gávea, ainda ofegante, resumiu o sentimento de todos os flamengos do mundo: - É, só dá Mengão, realmente, é uma equipe que merece, com toda a justiça porque se teve uma equipe que mereceu durante toda a temporada foi o Flamengo. A torcida começou a gritar o nome de Coutinho, falecido dez dias antes. Júnior amarrou a sua camisa no braço, e dizia que aquela camisa seria do filho de Coutinho. Zico organizou a volta olímpica, com Nunes ajudando a carregar a taça, e aos poucos os gritos que saudavam Coutinho e comemoravam o título foram se transformando em uma oração que fizeram de cem mil vozes uma só voz: - Mengão, Mengão, Mengão, só falta o Japão! Mengão, Mengão, Mengão, só falta o Japão! Mengão, Mengão, Mengão, só falta o Japão!

Só faltava o Japão. Faltava algo para o time que vinha de um mês intenso, de clássicos regionais, de uma batalha de três jogos contra um time sangrento, de uma decisão de campeonato carioca em três jogos extenuantes. Faltava ao melhor time do mundo provar mais uma vez que era o melhor time do mundo. A prova definitiva, incontestável, do outro lado do mundo. Só faltava o Japão.

A viagem longa, com escala em Los Angeles, começou silenciosa. Aos poucos foram surgindo as primeiras conversas, mas pouco havia a ser dito. – Nós nos conhecíamos pelos olhares. Estávamos esfolados por fora, cansados, mas por dentro mais fortes do que nunca. Não precisávamos conversar mais. O que todo mundo queria era que chegasse logo a hora do jogo. Nós sabíamos o que precisávamos fazer: jogar a nossa bola de sempre, relembra Lico, titular daquele time há pouco mais de um mês. Já em Tóquio, o tom continuava sendo esse. Na saída para o estádio, ainda no Hotel Takanawa Prince, Zico falou a todos: - Olha, gente, hoje mais que nunca temos de dar uma prova de dedicação, de desprendimento, Ninguém tentará coisas impossíveis, nem vai querer provar que sabe mais que o companheiro. Hoje temos de ser Flamengo como nunca.

O ar de superioridade dos ingleses do Liverpool de antes do jogo durou um minuto, tempo que Zico levou para aplicar um drible desmoralizante com um toque de primeira. O que se viu a partir de então foi um time de camisas vermelhas correndo inutilmente na tentativa de parar o toque de bola, os dribles e a movimentação constante do Flamengo, que criava espaços na defesa inglesa. Em um desses espaços enfiou-se Nunes, aos doze minutos, para receber um lançamento mágico de Zico e ficar de frente para o goleiro Gobbrelaar.

A torcida do Flamengo já sabia do desfecho mesmo antes de a bola entrar. Passe de Zico para Nunes no vazio, Nunes em desabalada carreira fazendo tremer o gramado, um toque rápido na saída do goleiro. Mas Nunes inovou. Um toque único, como sempre, mas desta feita tão leve que após desviar-se do goleiro a bola seguiu lentamente rumo ao gol, quicando devagar no gramado amarelado, queimado de tanto frio. O toque lento de Nunes não havia cruzado a linha e o centroavante já corria de braços abertos em direção a Júnior. Um gol lento, para que o atordoado Liverpool pudesse entender que estava diante do melhor time do mundo, do melhor Flamengo de todos os tempos.

Mister Paisley, técnico do Liverpool, diria após o jogo: - Ainda não entendi de onde surgiu aquele buraco no primeiro gol. E só no videoteipe os ingleses entenderiam a manobra rubro-negra. Começou com Andrade, que do campo de defesa lançou a Nunes na esquerda, recuado. Nunes tabelou curto com Adílio e retornou até o meio de campo, como se estivesse encurralado pelo adversário, que caiu na armadilha preferencial de João Danado. Retornando até a linha média, Nunes girou na frente do marcador e deixou de calcanhar para Mozer, que entregou a Zico. Os marcadores que Nunes mobilizara avançaram então contra o melhor jogador do mundo, enquanto Nunes corria rumo ao espaço vazio que ele mesmo criara.

O lançamento caiu suave atrás do último zagueiro, para o lento gol de João Danado Nunes, o centroavante dos abalos sísmicos na área inimiga, 9 na camisa, 9 na Escala Richter. A manobra de recuo e avanço deixou Paisley assombrado: - Vocês jogam um jogo que nós desconhecemos.

Seguiu o Flamengo com o jogo que os ingleses e o mundo prestes a ser conquistado desconheciam.  Com a área tomada pelo time do Liverpool, Tita bateu um escanteio da ponta direita pelo alto, para fora da área, com a bola caindo na meia esquerda. Aparentemente um erro de execução, mas era outra armadilha. Lá estava Júnior, que sem deixar a bola cair emendou um voleio que saiu próximo ao ângulo direito de Grobbelaar.

Pouco depois, McDermott botou Tita no chão com um pontapé. Falta frontal ao gol. Zico bateu por baixo, Lico pressionou no rebote e a bola sobrou para Adílio marcar e correr na direção das tribunas, jogando beijos para a sua esposa. Outra vez Paisley precisaria do replay: Nunes fez as vezes de quinto homem da barreira, e foi por ali que passou o chute de Zico, no espaço criado mais uma vez pelo Artilheiro das Decisões.

Como se precisasse de mais gols, o Flamengo continuou agredindo. Leandro tocou a Adílio pelo meio que investiu contra seus marcadores e tocou a Zico. As opções para as tabelas curtas eram Adílio, Lico e Tita, mas cadê Nunes? Está correndo rumo ao espaço vazio na ponta direita, mais um terremoto na área inglesa, mais uma vez o chão tremendo sob os pés de Gobbrelaar. Agora, aos costumes, toque rápido na saída do goleiro. O jogo não estava na metade e as capas das edições extras dos maiores jornais do Brasil tomavam o rumo das gráficas para estampar que o Flamengo era indiscutivelmente o melhor dentre todos os times de futebol, que reinventava naquele gramado amarelado o jogo inventado pelos ingleses e que aqueles jogadores de camisas brancas e longas mangas rubro-negras eram os campeões mundiais de futebol.

E os campeões, como se quisessem preservar a perfeição da obra que construíram no primeiro tempo, passaram o resto do jogo exibindo todo o repertório de dribles, passes, inversões, domínio, lances de efeito e triangulações que só aquele time sabia fazer.  Foi Zico que deu um drible de letra entre dois ingleses, foi Tita tirando Johnston para dançar, foi Andrade que chutou de muito longe, de curva, para um pequeno milagre de Gobbrelaar.

O jogo acabou. O choro emocionado do supervisor Domingos Bosco contrastava com o sorriso tranqüilo dos jogadores. A torcida com muitos japoneses aplaudia os artistas do espetáculo como se estivesse em um teatro. Então os jogadores perceberam que a missão ainda não estava cumprida. Se não faltava mais o Japão, se não faltava provar mais nada a ninguém, faltava voltar ao Brasil, para fazer o melhor time do mundo cair nos braços da melhor e maior torcida do mundo.

Fontes: Arquivos de áudio da Rádio Globo, Revista Placar e Jornal O Globo.

 

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